O governo brasileiro tem se destacado na fiscalização, mas se omite na hora de enfrentar a bancada ruralista e endurecer a lei contra essa prática.
Por Pedro Venceslau
Para quem não conhece profundamente as engrenagens do Congresso Nacional é difícil entender como projetos que aparentemente visam ao bem comum e, pelo menos em tese, contam com a simpatia formal da maioria dos parlamentares, acabam morrendo na praia por inanição política. Um dia antes do recesso parlamentar do meio do ano, que começou oficialmente em 15 de julho, o clima era de frustração nos corredores da Câmara e do Senado. Seis meses se passaram desde a posse da atual legislatura e poucos temas relevantes que correram por fora da agenda do governo federal chegaram ao plenário para serem votados.
Entre os projetos que aparentemente tinham tudo para sair do papel no primeiro semestre de 2011 está a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Trabalho Escravo, que prevê a expropriação das terras de quem for flagrado usando mão de obra de trabalho escravo ou análogo à escravidão (veja box abaixo). “Há dez anos o projeto da PEC está tramitando. O texto atual está pronto para ir ao plenário em segundo turno. É só votar”, lamenta o deputado federal Arnaldo Jordy (PPS-PA), vice-presidente da Frente Parlamentar de Combate ao Trabalho Escravo da Câmara. Ele compara esse caso kafkiano ao Estatuto do Idoso. Apesar de contar com a simpatia “formal” de quase todos no Congresso, o projeto passou dez anos tramitando antes de ser votado. “Todos eram a favor do estatuto, mas o projeto simplesmente não era votado. Ninguém entendia isso. Só depois ficou claro que havia um lobby subterrâneo patrocinado pelos planos de saúde e empresas de ônibus. O mesmo está acontecendo com a PEC do Trabalho Escravo. Nesse caso, quem está jogando contra é a bancada ruralista”, diz Jordy.
O parlamentar conta que ouviu do presidente da Câmara, Marco Maia (PT-RS) a promessa de que a Proposta será “prioridade” no segundo semestre. Apesar da perspectiva, a Frente Parlamentar está organizando uma verdadeira ação de guerrilha. Em agosto, os corredores do Congresso serão tomados por militantes de direitos humanos. “Artistas como Dira Paes e Letícia Sabatella aderiram ao movimento. Vamos fazer uma grande ação pela aprovação da PEC, mas sabemos que não será fácil. A bancada ruralista não é pequena”, avalia Jordy.
Fórum procurou diversos parlamentares de todos os espectros para medir a temperatura do debate. “Nós do PT pautamos esse projeto como prioritário para o segundo semestre. A Proposta não foi votada ainda porque a pauta da Câmara estava muito pesada”, disse o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), líder do partido na Câmara. O líder do governo na Câmara, Cândido Vaccarezza (PT-SP), diz que o projeto conta com o apoio da presidenta Dilma; deputados do PSDB e até do DEM também se manifestam favoráveis. Mas por que então o projeto não é aprovado? “O problema é que a PEC sempre acaba virando moeda de troca. A articulação política do governo precisaria entrar de sola nessa questão. Não basta só dizer que é a favor”, afirma o cientista político Leonardo Sakamoto, integrante da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo e diretor da ONG Repórter Brasil. Ele lembra que Dilma, quando candidata, assinou um documento no qual se comprometeu a atuar em favor da PEC. “A base do governo é frágil, fisiológica e depende muito de partidos como o PR e o PMDB, que estão cheios de ruralistas”. Além da PEC, existe também na Câmara um movimento para criar a CPI do Trabalho Escravo.
Outra realidade?
A bancada ruralista no Congresso não admite a possibilidade de retomar a votação da PEC do Trabalho Escravo. O grupo questiona a existência de trabalho escravo no Brasil contemporâneo e reclama de uma suposta caça às bruxas aos produtores rurais. “Sou contra a PEC da forma como ela está colocada. Precisamos de uma definição clara do que seja trabalho escravo. Isso não pode ficar na subjetividade de cada fiscal”, pondera o deputado federal Moreira Mendes (PPS-RO), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária. Ele vai além e defende que seja criada uma legislação trabalhista específica para o campo. “A forma de se trabalhar no campo é diferente da cidade. Quem está no campo fica sujeito às intempéries do tempo. A colheita não espera a lei e tem que ser feita naquele dia. Para tirar leite, por exemplo, muitas vezes é preciso estar de pé às 4 da manhã”. O líder ruralista também reclama que os produtores rurais de hoje são perseguidos. “Hoje, o fiscal vai lá na terra, faz seu levantamento e, no outro dia, o fazendeiro já aparece em uma lista negra do Ministério do Trabalho. Ele não tem defesa. Isso é um absurdo”.
Em sua dissertação de mestrado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, apresentada em janeiro, a advogada Camilla de Vilhena Bemergui, coordenadora do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho, defende a PEC como um instrumento indispensável para o combate ao trabalho escravo. “A questão que fica como desafio é a situação pós resgate (dos trabalhadores em situação de escravidão), pois as ações até aqui existentes têm se mostrado ineficientes no sentido de reinserir o trabalhador numa realidade em que se escape de nova exploração”. Ela afirma que a PEC 438/2001, que está completando 11 anos de trâmite, seria uma saída. “O que se vislumbra, entretanto, é que a fiscalização é paliativa na erradicação do trabalho escravo. A relação da demanda (considerando-se as dimensões geográficas do país, quantidade de empregadores e empregados) com a quantidade de auditores e custo público inviabiliza que a totalidade das situações seja averiguada.”
Dividindo a água com o gado
Os casos de trabalho escravo flagrados no Brasil assustam pela crueldade. A boa notícia é que a ação do governo de combate a essa prática tem apresentado resultados concretos. Segundo dados da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho, 2.626 trabalhadores foram resgatados em 2010. No mesmo ano, R$ 8,7 milhões foram pagos de indenização. As operações, que são sempre feitas de surpresa, são organizadas por uma coalizão que reúne Ministério Público do Trabalho, Polícia Federal, Polícia Rodoviária e Ministério do Trabalho. Eles formam uma espécie de “Tropa de Elite”, que age geralmente a partir de denúncias anônimas. A localidade geralmente é informada apenas na hora do embarque para evitar vazamentos.
“Para chegar em carvoarias com trabalho escravo no Pará nós chegamos a demorar até três dias embrenhados na mata. Se você aparecer lá sozinho, eles te apagam”, conta o pesquisador Marques Cesara, da ONG Observatório Social, que acompanhou diversas operações. Quando essas ações começaram, em 1995, foram feitas apenas 11 operações e 84 trabalhadores foram resgatados. “Cheguei a resgatar trabalhadores no Acre que eram obrigados a beber água onde o gado defecava. Eles tinham que fazer suas necessidades no mato”, conta o procurador do trabalho Everson Rossi, membro da Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho do Ministério Público.
Em muitos casos, o grupo é recebido com desconfiança pelos trabalhadores. “Em Tucumã, no Pará, um trabalhador veio me perguntar se eu estava lá para tirar o trabalho dele”, conta. Ele explica que depois da diligência, o fazendeiro é obrigado a instalar seus trabalhadores em um hotel até que o contrato de trabalho seja rescindido. Em muitos casos, o dono da terra conta com um grupo de trabalhadores registrados e outro de “frilas”. “Esses, que são chamados para empreitadas, tipo colocar cerca, fazer o roçado ou aplicar veneno, não são considerados empregados”, diz o procurador. Também é comum os grupos ouvirem relatos de trabalhadores que já chegam devendo ao local da empreitada.
Depois de recrutados por “gatos”, eles viajam horas, às vezes dias, é só depois ficam sabendo que o valor do transporte, dos equipamentos e da comida serão “descontados” do pagamento final. “Mas não é só no campo que isso acontece. Já vimos casos de péssimas condições de trabalho em frigoríficos e na construção civil”, finaliza Everson Rossi. No final de junho, seis trabalhadores contratados para a construção de cercas em Ariquemes, em Rondônia, foram encontrados em situação totalmente degradante. Divididos em duas equipes de três integrantes, os trabalhadores disseram ao Grupo Móvel que haviam sido contratados para receber, cada equipe, a quantia de R$ 2 mil para cada quilômetro de cerca construído, embora, no momento do acerto, o contratante só pagasse R$ 500 por quilômetro construído. O Grupo Móvel constatou que, além de os trabalhadores terem que dividir o valor contratado por três, eles é que arcavam com a alimentação, com a compra das ferramentas de trabalho e dos equipamentos de proteção individual.
As duas equipes foram contratadas em momentos distintos. A mais antiga estava no campo desde o dia 5 de janeiro e a mais recente, havia 23 dias. A primeira equipe cujo trabalho resultou na construção de aproximadamente 19 quilômetros de cerca tinha um saldo com o empregador de R$ 9,5 mil (considerando o pagamento de R$ 500 por quilômetros de cerca construído) e estava com uma dívida para com o empregador em torno de R$ 13 mil, devido aos gastos com alimentação, ferramentas e compra de EPIs, feita no comércio de Ariquemes, mas anotado em cadernetas e recibos.“Sem dúvida, o ciclo vicioso de endividamento identificou a servidão por dívida, situação em que os trabalhadores jamais conseguiriam saldar sua dívida”, afirmou o procurador do Trabalho Tiago Ranieri de Oliveira.
Além da exploração desmedida do trabalho, os trabalhadores estavam alojados em meio a um pasto em barracões de lona, construídos por eles próprios. Não havia água filtrada e a água utilizada para beber e preparar a alimentação era de um pequeno riacho, existente no local onde, também, lavavam as roupas e tomavam banho. Os trabalhadores faziam as necessidades fisiológicas no meio do pasto, não havia latrina, tampouco local para alimentação, sendo que as refeições eram feitas nas camas construídas de forma improvisada, explica o procurador. Foi estipulado pelo MPT uma multa por dano moral coletivo no valor de R$ 50 mil para ser revertida para a qualificação profissional dos trabalhadores da região por intermédio de cursos no ramo da agropecuária.
Entenda a PEC do Trabalho Escravo
A PEC 438/2001 define ainda que as propriedades confiscadas serão destinadas ao assentamento de famílias como parte do programa de reforma agrária
A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) número 438 foi apresentada em 1999 pelo ex-senador Ademir Andrade (PSB-PA), sob o número 57/1999. Ela propõe nova redação ao Art. 243 da Constituição Federal, que trata do confisco de propriedades em que forem encontradas lavouras de plantas psicotrópicas ilegais, como a maconha. A nova proposta estende a expropriação sem direito à indenização também para casos de exploração de mão de obra análoga à escravidão. A "PEC do Trabalho Escravo" é considerada pelos órgãos governamentais e entidades da sociedade civil que atuam nas áreas trabalhista e de direitos humanos como um dos projetos mais importantes de combate à escravidão, não apenas pelo forte instrumento de repressão que pode criar, mas também pelo seu simbolismo, pois revigora a importância da função social da terra, já prevista na Constituição.
No Senado Federal, a PEC tramitou durante dois anos e foi aprovada em 2001. Na Câmara, permanece parada desde 2004. No mês de agosto daquele ano, a matéria foi aprovada em primeiro turno no Plenário da Casa – com 326 votos favoráveis (18 a mais que o necessário: emendas constitucionais exigem a anuência de 3/5 do total de 513 deputados federais), dez contrários e oito abstenções. Desde então, permanece à espera da votação em segundo turno. O avanço da proposta em 2004 foi impulsionado pelas pressões geradas após o assassinato de três auditores fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho e Emprego, em Unaí (MG), durante uma emboscada em janeiro do mesmo ano. Devido a mudanças propostas por membros da bancada ruralista (para inserir os imóveis urbanos na expropriação), a PEC 438/2001 terá que retornar ao Senado depois de aprovada na Câmara.
“Tropa de Elite” já resgatou 39.180 trabalhadores*
1995 – 11 operações/ 84 trabalhadores resgatados/ Nenhuma indenização
2000 – 25 operações/516 trabalhadores resgatados/R$ 472,8 mil pagos de indenização
2005 - 85 operações/4.348 trabalhadores resgatados/R$ 7,8 milhões pagos de indenização
2010 – 143 operações/2.626 trabalhadores resgatados/R$8,7 milhões pagos de indenização
*Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego
Assessoria de Comunicação
Gabinete Dep. Arnaldo Jordy
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